quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Histórias do 23 - Episódio I


Não consigo compreender o significado do dilema que comigo desperta todas as manhãs, sem excepção, dos meses de Julho e Agosto, em especial. As fornadas de turistas que, desde há um par de anos, invadem o Algarve quando o sol abençoa esta terra, provocam-me uma extrema alegria pela vida que trazem a Albufeira, ao mesmo tempo que uma certa revolta me tortura pela impossibilidade que as mesmas fornadas me retiram qualquer possibilidade de sentir um momento de tranquilidade.

Uma dessas ocasiões, não só se sente, como se tem de contornar. Na praia, o espaço onde aprendi a jogar à bola e a ver os barcos a descarregarem o peixe é nestes meses uma pista de manobras de perícia no trajecto que segue da antiga escadaria à rebentação das ondas.Na passada manhã do dia 23, equipei-me a preceito e, depois de ter contornado e pedido desculpa uma centena de vezes, parti para uma habitual aventura naquele que é talvez o sítio mais tranquilo da Albufeira dos meses de Julho e Agosto: Debaixo de água. Bem, e mesmo assim já não ponho as mãos no fogo com este tipo de garantias.

As actividades a que me dedico nesta calma, vão desde a simples observação e fotografia da vida marinha, à caça de um ou mais exemplares que mais tarde irão fazer as delícias do meu prato.Sem aparente excepção, a aventura decorreu com normalidade. Deliciei-me mais uma vez com os cardumes de sargos que reflectiam os raios solares dissipando-se nas águas circundantes, assustei-me com uma moreia da só qual me apercebi um metro antes de ser tarde de mais e cacei dois robalos. As discussões que ainda hoje tenho com os meus colegas de escola por este meu “acto bárbaro”, classificam eles. Mas isso ficará para outra altura.

Dizia que tudo decorria com normalidade até ao momento em que resolvi deixar a calma e o sossego das águas pelo meio onde, ainda assim, me sinto realmente um Homo sapiens. Emergi e todo o meu corpo sentiu um choque que teve origem no que se me deparava. Uma praia deserta, sem vivalma em pleno mês de Agosto. Em plena terra de Albufeira.Abri e fechei os olhos várias vezes. Esfreguei-os. Tudo na mesma. Comecei a tentar enumerar possíveis explicações para o fenómeno, mas nada era muito plausível. Perda de consciência, noção do tempo desfasada, todas elas embatiam no mesmo problema, as reservas limitadas de oxigénio e o facto de eu continuar vivo. Mas a confusão era imensa e nada disto parecia fazer sentido, nem mesmo a minha última conclusão segunda a qual teria sofrido de uma embolia durante o processo de descompressão e a mesma estar-me-ia provocando alucinações visuais. Contudo sentia-me demasiadamente consciente para me encontrar perante um problema desta natureza, ou melhor, tinha algumas náuseas. Mas seriam verdadeiras ou fruto da confusão mental?

Encetei algumas braçadas em direcção ao areal. Os meus movimentos pareciam descoordenados. Senti-me fraco. Mas consegui chegar à praia e, apesar de o sol se encontrar a pique, estranhamente consegui fazer o trajecto de volta à escadaria em linha recta. Não estaria mesmo ninguém na praia ou estaria a sonhar?

A minha carrinha encontrava-se isolada no estacionamento. No menor número de movimentos que um fato de mergulho permite, despi-o e, já de calções e chinelos cheguei-me ao volante e decidi arrancar em direcção ao centro de saúde para confirmar ou não a minha embolia.Pouco depois comecei a avistar algumas pessoas e veículos cujo número e agitação foi aumentando à medida que me afastava da praia. Tudo isto só veio aumentar a minha instabilidade. Algo estava errado comigo. Como é possível as ruas estarem com gente, o calor abrasador de Agosto e ninguém na praia.

Chego ao centro de saúde depois de já ter passado por inúmeros carros. Curiosamente ou não, ninguém circulava no sentido da praia. Ao entrar deparo-me com alguma agitação das equipas que trabalhavam naquele momento. Algo que também não me passou despercebido por me parecer totalmente desadequado tendo em conta o número de pacientes em espera: um apenas. Um senhor de idade que segurava um envelope provavelmente com resultados de análises. Dirigi-me ao guichet, apresentei o cartão de utente e vi a funcionária preencher um papel. Entretanto já o paciente que se encontrava na sala tinha sido chamado. Ainda mal me havia sentado já o meu nome soava nos altifalantes.

Entrei no consultório e comecei por anunciar que provavelmente estaria a sofrer uma embolia. O médico de serviço espantado pediu-me para explicar as razões que me levavam a tal conclusão. Assim que falei nas alucinações que tive ao sair da água levo com uma forte gargalhada. Aparentemente interminável… (continua)